‘O Corpo Dela e Outras Partes’, de Carmen Maria Machado, mostra-nos que o corpo é um campo de batalha
14-09-2018 - Mário Rufino
As ideologias e práticas sociais têm no corpo, especialmente no feminino, um campo de batalha. Sobre a mulher têm incidido prescrições morais e ideológicas. O sexo é ainda algo “sujo”, mantido debaixo da vergonha. A sua prática é vista como “guilty pleasure”, indigna de ser mencionada. Quando não é consentido e só existe como meio de domínio, o silêncio protege o abusador. Mas algo vem mudando nestes últimos anos.
O abuso sexual, denunciado por movimentos como os do #metoo, é de discussão pública. O mesmo se passa com a violência doméstica, crime anteriormente silenciado pela vergonha. Lentamente, a sociedade tem-se transformado e ido ao encontro de uma maior liberdade de acção e pensamento. Se é o suficiente? Não o é para quem sofre e denuncia essas limitações assimiladas ao longo de séculos.
Foi imbuída destas tensões que Carmen Maria Machado escreveu O Corpo Dela e Outras Partes (Alfaguara).
A escritora norte-americana põe o corpo no centro da questão enquanto desmonta, narrativa após narrativa, as diferentes consequências da impreparação da sociedade para aceitar a riqueza de diferentes tipos de individualidades, a redefinição do género e novas concepções de núcleos familiares.
As hierarquias esbatidas próprias de famílias organizadas em rede – e mais fragmentadas – encontram na pluralidade de narrativas e na fragmentação de muitas delas a melhor forma de análise. Essa fragmentação é ainda mais relevante em “Especialmente abominável”, onde Carmen Maria Machado “vira o jogo”.
Se a modelização das séries televisivas tem retirado relevância à ficção literária, a divisão das histórias em capítulos, que existem como parte de um todo sem perda de autonomia, fornece um maior fôlego para quem conta uma história. A autora utiliza essa estrutura na narração de várias histórias, modulares e coerentes. Inventário é outro dos contos fragmentados e, neste caso, pequenas histórias espelham a diversificada vida sexual da narradora. O sexo, para Carmen Maria Machado, é tão visceral como o de Eimear McBride, para quem a libido parece esbater fronteiras morais.
O encanto destas narrativas não depende, no entanto, de pornografia gratuita; são histórias em que a presença de elementos estranhos, como a fita de O Ponto do Marido , a defesa da liberdade sexual e de pensamento (a religião é substituída pela música e literatura em Mães ) fazem com que o leitor queira acompanhar a voz de quem conta.
No fim, depois de se conhecer todas estas personagens, percebe-se que há algo de comum a todas elas.
“Se pensarmos bem” , é afirmado em O Ponto do Marido , “ as histórias têm esta característica comum de se unirem como gotas de chuva num charco. Nascem das nuvens, separadas umas das outras, mas, assim que se juntam, torna-se impossível distingui-las. ”
É a mulher vista por uma escritora com algo para dizer, e di-lo com o mínimo de pudor. Em entrevista a Isabel Lucas, para o suplemento Ípsilon do jornal Público , a autora afirma: “ Escolho as palavras que parecem adequar-se. Por exemplo, não sei como a palavra cunt [cona] foi traduzida. É uma palavra que uso porque é a minha palavra preferida. (…) O facto de ser directa, eficaz, agrada-me, por isso é uma palavra que gosto de usar. É tão bonita! ” É precisamente dessa forma desempoeirada e menos canónica de contar e de dar a conhecer as personagens que provam a qualidade de O Corpo Dela e Outras Partes .
Fonte: Comunidade Cultura e Arte
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