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Ano Agustina: ‘O Manto’, ou as histórias que ficam por contar

01-06-2018 - Tiago Vieira da Silva

Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

No Livro de Job do Antigo Testamento, Job rasga o seu manto e expõe as marcas do mal que o reveste; e esse manto, que todos nós carregamos, é impossível de ser descrito, pois, desagasalhando-nos ou ocultando-nos, subsiste sempre no seu arrastar de «todas as fúrias e ternuras do mundo», expondo tanto as suas manchas e os seus rasgões como as marcas do corpo que protege.

Na obra O Manto, de Agustina Bessa-Luís, o que lhe dá o título enovela as várias personagens do Porto de finais dos anos cinquenta do século XX, em simultâneo com a família de Job, entrecruzando-as e às suas experiências num ensaio visionário sobre a natureza humana – donde irrompem tanto as paixões como, também, a perversidade que já vários apontaram a Agustina, e que ela refuta, no entanto, sublinhando a diferença entre o saber-se o que é a perversidade, e sê-lo, de facto.

O urbano e o rural confluem na representação de uma sociedade e das referências provincianas nos seus costumes e hábitos, ilustrando um retrato social que nos é revelado nas intermitências do «desenho nítido das paisagens», como referiu Teixeira de Pascoaes na carta que enviou a Agustina a propósito de Mundo Fechado (1948), a primeira obra publicada pela autora – um desenho que ele louvou pela veemência com que o feriu «a figura esboçada do personagem principal». Em O Manto, contudo, não há apenas um personagem principal, mas vários, que Agustina mergulha na melancolia, na inquietude, na incerteza, processo do qual é extraída a força propulsora da história, ou, melhor dizendo, das várias histórias que se encadeiam na narrativa.

Também em O Manto, o desenho das paisagens da extinta província do Entre-Douro-e-Minho, entre o Porto e a Serra d’Arga, constrói-se a partir das personagens e das suas relações pessoais, a maneira como estas se desdobram e se perdem nas cores do Barredo, nos azuis foscos das paredes da casa de Manuela, nas margens do rio Ave flanqueadas pela orla do bosque; na fragilidade de Lourença, na argúcia ácida de Filipe, na paixão de Gracia. E, entre galanteios, conluios, discussões filosóficas ou discussões prosaicas, é traçado um retrato da sociedade portuense, temperado pela inquietação tão idiossincrática de Agustina, que se fragmenta nas aspirações, nas paixões, nas desilusões, nas ambições dos vários personagens, oscilantes entre polos tão extremos como o altruísmo e a venalidade, que tecem o manto de «farrapos imensos onde se embalou a morte», o manto que «não se lê nem se escreve», o manto que «todos os descontentamentos (…) protege, todas as ignorâncias (…) vence, todas as solidões (…) inspira e transfigura».

É este manto que, ao arrastar-se pelas paisagens do Porto e do Minho e pelos campos da terra de Hus, de espinheiros e amendoeiras em flor, faz irromper as várias histórias que, na sua transitoriedade, invocam a importância da «memória do amor», seja pela sua presença ou pela sua ausência, pois «nem tudo é, na realidade, uma história, excepto se a memória do amor a consagra como tal». Agustina debruça-se assim sobre o mais prosaico da vivência humana, os encontros e os desencontros, os episódios que a própria autora vai recordando e enunciando, desde a história de Jemimah, filha de Job, que perscrutava os campos e as estradas à procura do pastor com quem outrora se cruzou, e que continuou a desejar mesmo depois de se casar com o rico mercador a quem fora prometida, à história do homem conhecido como Rapa-Caveiras, que trabalhava no Instituto de Medicina Legal e cuja filha, depois de se ter suicidado, ficou na morgue sete dias sem que o pai a reconhecesse – precisamente pela falta dessa «memória do amor».

Quem conhece a obra de Agustina Bessa-Luís sabe que os seus livros terminam comummente de forma inclusiva, e, como tal, também O Manto, na catadupa de histórias, pensamentos e ideias que eclodem na profusão de imagens, deixa deliberadamente em aberto o destino das personagens e as questões que irrompem ao longo da narrativa, num final coroado, e bem, pela frase: «Eis como se termina um livro – deixando sempre alguma coisa por dizer».

Fonte: Comunidade Cultura e Arte

 

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