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O Festival da Canção de 1975

24-04-2014 - Tiago de Sousa

Alerta, alerta! Às armas, às armas! Cantava José Mário Branco no Festival RTP da Canção de 1975. Não há povo que tenha liberdade / Enquanto houver na sua terra exploração / Liberdade não se dá só se conquista / Não há reforma burguesa que resista / Democracia popular! / E ditadura proletária! / Pois claro! Estes versos dão-nos o retrato do espírito que se viveu na sala do Teatro Maria Matos em Março de 1975, como se antecipando o Verão Quente.

O Festival da Canção vivia ainda as suas décadas de ouro. Prelúdio dos concursos de talentos mais variados que, hoje em dia, pululam na cultura pop global, esse concurso cristalizava a imagem da Europa progressista, liberal e democrática, da euforia renascentista do pós-guerra, ao mesmo tempo que afirmava a sua composição de múltiplos estados-nação, cada um, pretensamente, com uma distinta matriz cultural. Em Portugal, não era então estranho, como hoje, que os temas recorrentes sobre o mar, as Descobertas, o xaile da fadista, preenchessem o imaginário colectivo hegemónico, resquício da nossa história colonialista e imperialista.

1975 foi como um OVNI. Em cada tema, com mais ou menos afinco, entendem-se os momentos definidores que então se viviam. Aos compositores e letristas, imbuídos pelo espírito da época, cumpria-lhes o papel de falar às massas, de transportar para a cultura popular uma corrente verdadeiramente desafiante e revolucionária. Cantou-se, em alto e bom som, os assuntos que se disputavam fervorosamente na rua.

Quem está por cima / Afirma que a razão do mal / Só tem a ver com o pecado original / Mas diz o povo que o pecado essencial / É o Capital! Cantavam Fernando Girão e Jorge Palma num hino típico festivaleiro, que ficou em sétimo lugar.

Nos versos cantados por Paco Bandeira em Batalha-povo, encontramos uma visão mais poética e lírica sobre o momento histórico que se vivia: Trago de liberdade duas mãos-cheias / Sou força do trabalho que se semeia / Sou o estandarte novo / Desta muralha / Sou a batalha-povo / Que em mim se ganha / Pão que por mim se ceifa.

Jorge Palma cantou Viagem. O título, auto-explicativo, é o pano de fundo de uma viagem transformadora, uma espécie de novo começo. É provavelmente a canção mais sofisticada do festival. Uma canção plena de rasgo.

Em cada uma das canções que desfilaram, a centralidade do tema é o movimento de massas: fosse o povo para a burguesia democrata, fosse a classe operária para os que desenvolviam a tese marxista.

A canção vencedora acabaria por ser Madrugada, cantada por Duarte Mendes, um dos capitães de Abril, oficial da Escola Prática de Artilharia de Vendas Nova, que conjugou com a carreira militar uma carreira musical. Duarte Mendes também tinha participado no Festival da Canção em 1970 com a canção Então Dizia-te.

Talvez o seu ar galã, o facto de ter sido um obreiro da revolução e a temática apologética e heróica do curso revolucionário, embrulhadas num refrão operático, tenham contribuído para a sua vitória com escassos 2 pontos sobre o segundo classificado o tema A Boca do Lobo de Carlos Carvalheiro, cuja temática paternalista sobre a grande massa popular é também um traço marcante do Processo Revolucionário em Curso.

O próprio cenário, bastante minimal e simplista, remete para uma nova prioridade dada à temática, quase que a dizer, “vivemos tempos de ilusão e de esteticismo”, típicos dos regimes fascistas, “e agora vivemos o tempo das ideias e das abstracções”. A deposição do espectáculo em prol da matéria da canção é uma das marca mais relevantes da edição de 1975.

Pena é que, entre 1975 e 2014, pouco se tenha avançado no sentido da verdadeira emancipação. O que entendemos ao fazer um retrato geral dos anos que passaram, podia bem ser um retrato fiel sobre o que se tornou as nossas vidas. A crescente superficialização do quotidiano redunda em temas banais de significância simplista, alternados com a mistificação heróica do papel de Portugal no mundo. O que este episódio, de certo modo, evidencia é a ausência de uma preocupação ideológica que vá além do que está instituído. Sem querer retornar à problemática do cantor-activista, típico do pensamento marxista-leninista, o facto da banalização ser uma prática cultural absolutamente hegemónica é um sintoma muito claro da alienação vigente. Que os próprios intervenientes, tantas vezes vítimas dessa mesma cultura banalizante, se remetam ao papel da insignificância é, ainda, uma consternação que me ocupa.

Por Tiago Sousa

Revista Rubra

 

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