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FADO NA MADRAGOA
Da Severa a Aldina

16-06-2017 - N.A.

Por entre as camadas que fazem um dos bairros mais castiços da cidade, a Madragoa também tem uma história com o fado. Para ela vai o foco da visita guiada dos Itinerários de Lisboa, a que voltamos nos dias 1 e 15 de junho   [ver info infra] . Desafiámos uma habitante da zona, que também é uma das mais aclamadas intérpretes da canção nacional, para vir conhecer alguns locais de referência. Aldina Duarte não se fez rogada, confessando que não faz muita vida de bairro mas tem “o sonho de dar um dia uma biblioteca pública à Madragoa”. E acabou a falar de um projeto a que volta também no mês das Festas juninas e lhe é especialmente caro: o da Comunidade Fado para Todos.

A filha da Barbuda
Na Lisboa de Oitocentos, a Madragoa era rica em tabernas vivazes, de cor e ritmo, como a de Ana Gertrudes, mais comummente chamada “a Barbuda”. Foi ali, no número 33 da Rua Vicente Borga (antiga Rua da Madragoa), que deu à luz do dia 26 de julho de 1820 Maria Severa Onofriana. Apesar de batizada nos Anjos e reclamada pela Mouraria, foi ainda ali que a Severa se lançou na desgarrada, com outras personagens castiças do bairro, e a partir daqui que levou o fado para outras zonas da cidade.

O mago no Theatro das Trinas
Armando Augusto Salgado Freire nunca conseguiu livrar-se do diminutivo, mesmo se ficou para a história como o “pai” ou o “mago da guitarra portuguesa”. Ainda hoje é conhecido - e reverenciado - como Armandinho, talvez por se ter estreado com apenas 14 anos (nunca estudou música e atribuía a forma de tocar ao simples facto de ser português) em 1905, num teatrinho pequeno mas janota, situado entre os números 67 e 73 da Rua das Trinas. Frequentado tanto pela população de varinas como por ilustres nomes da representação na altura, era palco de espetáculos variados e muito contribuiu tanto para a institucionalização artística do fado como para a sua afirmação como a canção de Lisboa.

Sou doida pela obra do Armandinho
“É o mestre de todos os guitarristas até hoje, não há um que não o diga, e já lá vão mais de cem anos, é incrível. Ele teve um papel fundamental na importância da melodia no fado, havia uma base melódica e tecnicamente muito rudimentar, os músicos só arranhavam aquele perlim-pim-pim... E o Armandinho, com o seu talento, transportou o lugar quer da guitarra, quer da música, quer da melodia dos fados a um nível incomparável. Eu diria que ele transformou uma expressão que era absolutamente popular, rústica e de quotidiano numa forma de arte.”

Um altar convertido em palco
O ouvido treinado de Armandinho soube ainda reconhecer e incentivar o talento de uma adolescente que também fez a sua fama na Madragoa. Hermínia Silva assinou em 1926 um contrato de oito dias mas haveria de ficar por dois anos, cantando no final da exibição de filmes, como o “Amor de Perdição”, que passavam no Cine-Esperança. Com a extinção das ordens religiosas em 1834, o espaço da antiga igreja do Convento das Bernardas, na Rua da Esperança, tinha sido adaptado a sala de espetáculos populares, com capacidade para 400 pessoas. Ali foram recebidos os vencedores das marchas populares de Junho de 1932 e, depois de um interregno como armazém de restauro de móveis antigos, o espaço voltou a ser recuperado para a cultura. Desde 2001, recebe exposições e espetáculos na qualidade de Museu da Marioneta.

Aprender com a Hermínia
“Não foi por acaso que o povo colocou a Amália e a Hermínia ao mesmo nível, porque o povo não é estúpido, e estamos a falar de dois génios. Os dons da Hermínia estão ao nível dos dons da Amália, não terá aquela voz tão universal mas é igualmente rica. Aliás, a Amália também adorava a Hermínia. Enquanto fadista, eu tenho muito a aprender com a Hermínia porque ela me mostra que a afinação é fundamental, e a leveza sem ser superficial - como é que se é leve a cantar sem ser superficial?! A Hermínia era uma intérprete solar, com uma musicalidade extrema, uma lição de música para qualquer cantor, fadista ou não.”

A melhor escola de fado de sempre
É casa de interesse turístico e traz gente de todo o mundo à Madragoa. Afirma-se como restaurante típico e até ocupa o espaço de uma antiga padaria (Rua do Meio à Lapa 18). Mas o Sr. Vinho, fundado em 1975, continua a ser o palco onde muitos dos grandes nomes do fado começam a afinar a voz. E o posto de trabalho de Aldina Duarte, todas as noites de terças a sábado, determinante para a sua residência como a vista de rio. “Se não houvesse Sr. Vinho, eu não seria a fadista que sou, porque o Sr. Vinho é a maior e melhor escola de fado de sempre. A Maria da Fé é uma artista da primeira linha do fado e tem a generosidade de manter uma casa que é vital numa arte de tradição oral. Se o fado não tivesse este tipo de testemunho e de espaço para crescer desvirtuar-se-ia daquilo que tem de melhor, que é a autenticidade, a organicidade, a raiz. Porque isto não é uma música qualquer que andamos para aqui a inventar, o fado inscreve-se numa história que tem 150 anos.”

O “Fado da Madragoa”
Se tivesse que escolher um fado para descrever a Madragoa, diz Aldina que era “um cantado pela Maria da Fé, precisamente, que diz «ó Madragoa, que és a mãe da minha mãe» (cantarola). A Lucília do Carmo é que o criou, e a versão dela é fantástica, mas é um dos temas mais bonitos cantados pela Maria da Fé. Só a maneira como ela diz «mãããe»: está ali a mãe de toda a gente e é isto que os grandes artistas têm. Faz-nos perceber o que é uma pessoa sentir-se num bairro como no colo de uma mãe. O lado protetor, a dimensão humana de um bairro é essa: sentir um amparo que se sente na família.”

Comunidade Fado para Todos
Desafiada a prolongar as oficinas para o Museu do Fado, Aldina Duarte lembrou-se de uma Comunidade de Leitores que tinha integrado no passado. “Eu não sou a coordenadora, sou mais um membro.” Sugere os temas e traz os fados (reunidos num canal que criou para o efeito no Youtube) e vibra com o facto de ter ali pessoas de idades (dos 16 aos 73 anos) e profissões diferentes, garantindo que “é tão importante a opinião de um fadista como de uma dona de casa.” Tudo o que se lhes pede é “o seu tempo e que sejam quem são”. Criam afinidades, “já houve ali um casamento, já nasceu ali um bebé, já aconteceu tudo!” A comunidade volta a reunir-se em junho para abordar “A Saudade e o Fado” e, como habitual, “partimos do fado para discutir tudo”. “Já comparámos o Tom Waits e o Marceneiro, a partir da letra de um fado tivemos uma psicóloga a falar sobre o corpo; fazemos coisas muito engraçadas e temos discussões maravilhosas. O fado já é uma provocação emocional muito grande e ali discutem-se gostos, que é uma coisa dificílima.”

Fontes:  Madragoa - Sons e Arquitecturas  (Livros Horizonte) e  Do Teatro das Trinas ao Cine-Esperança – Armandinho, Hermínia Silva e o Fado na Madragoa  (Caleidoscópio), ambos de José Silva Carvalho.

[ por Manuela Costa | fotografias de Humberto Mouco/CML-ACL ]

 

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