Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”
21-08-2020 - Lucas Brandão
Simone de Beauvoir é uma das figuras proeminentes no que toca ao movimento feminista e ao existencialismo no século XX. A autora francesa partilhou o protagonismo da sua produção literária com nomes como Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty, Claude Lévi-Strauss, e como o seu grande parceiro de vida e de perspetivas, Jean-Paul Sartre. Apesar de não se considerar como uma filósofa, é inegável a sua influência nos movimentos acima apontados através dos romances, biografias e monografias sociopolíticas produzidas. Para além da escritora, foi mente pensante e deslumbrante, não só pela abrangência como pelas causas e pelo que dava de si às mesmas. Simone acreditou, lutou e venceu pelo contributo afirmativo que deu aos seus conterrâneos mais novos. França nunca mais foi a mesma após tê-la nos seus braços.
Nascida a 9 de janeiro de 1908 em Paris, cidade que a viu nascer, aprender, viver, acreditar, lutar, escrever e cessar, Simone de Beauvoir foi a autora de algumas obras fundamentais para que o existencialismo fosse consolidado e para que o feminismo tivesse uma voz mais demarcada e assertiva. A francesa formou-se de forma apetrechada, licenciando-se em Matemática no Instituto Católico da capital francesa, literatura e línguas no Institut Saint-Marie e a sua predileta filosofia no Sorbonne. Nesta, defendeu uma tese em que analisava a filosofia de Leibniz e foi somente a nona a obter uma graduação na mencionada instituição. No entanto, não foi aí que parou. Inscreveu-se numa pós-graduação em Filosofia na École Normale Supérieure e travou conhecimento pela primeira vez com o seu futuro companheiro de vida Jean-Paul Sartre. Apesar de ambos nunca terem casados, a sua ligação manteve-se viva e intensa na partilha de perspetivas, de experiências, de sentimentos e até de inspirações, tendo ambos os conceitos de Hegel e de Leibniz como orientadores das suas consciências e obras.
No que toca à literatura escrita por Simone, tudo começou com o romance “L’Inviteé” “(1943), que acaba por ter como cenário o pré-Segunda Guerra Mundial. O casal Françoise e Pierre acaba por ver a sua relação condicionada ao acolher no seu relacionamento um terceiro elemento. A história é percecionada no ponto de vista de Françoise e explora conceitos como a liberdade existencialista, o “angst”, que, para Kierkegaard, significava medo, ansiedade ou temor, e o outro. Esta promiscuidade acaba por ser uma réplica do caso do casal Beauvoir e Sartre com as irmãs Kosakiewicz. Enquanto Sartre queria estabelecer uma relação com Olga (estudante de Simone) e não foi correspondido, este iniciou uma com a sua irmã Wanda. A autora acaba também por refletir nas consequências psicológicas advindas destas experiências a três.
O primeiro ensaio filosófico da francesa intitulava-se “Pyrrhus et Cinéas” (1944) mas foi o seu segundo que a consolidou como uma filósofa prestigiada no campo existencialista. “The Ethics of Ambiguity” (1947) é um trabalho que, apesar de simples compreensão, clarifica algumas inconsistências teóricas que se arrastavam até então. Num confronto entre a realidade absoluta e as restrições circunstanciais, esta obra divide-se em três partes lógicas. A primeira (“Ambiguity and Freedom”) engloba a postura ética de Simone que é também analisada no seu primeiro ensaio, em que afirma que o homem é essencialmente livre, liberdade essa que deriva do nada que representa. Esse aspeto é o que a mesma considera ser fundamental para ser consciente da sua existência. A liberdade assinalada acima exige, no entanto e a seu ver, a realização de objetos e projetos concretos.
A segunda (“Personal Freedom and Others”) contém uma enumeração de formas pelas quais uma pessoa pode tentar impedir a sua liberdade, visto que esta pode ser desconfortável e inquietante para o sujeito. Contudo, não nega a existência da liberdade genuína, em que o entusiasmo de um aventureiro e a paixão de um entusiasta acabam por ser complementados à preocupação com o alheio e com as suas liberdades. Na terceira parte (“The Positive Aspect of Ambiguity”), dividida em cinco secções, a existencialista critica a contemplação desligada das coisas, explora os contras da opressão, avaliando as relações entre o opressor e o oprimido e a perceção de cada um dos intervenientes e disseca sobre as necessidades de perpetrar atos violentos e os dilemas morais advindos desta. Para além disto, enuncia também a relação ação (passado + presente) – efeito incerto (futuro), criticando o materialismo determinista de Karl Marx e conclui asseverando que todos somos radicalmente livres se escolhermos conferir essa vontade à nossa existência na sua finitude, caminho que levará ao infinito (transcendência).
“ Passion is converted to genuine freedom only if one destines his existence to other existences (…) To will oneself free is also to will others free.”
Em termos jornalísticos, a gaulesa, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e outros fizeram parte da primeira editoria do periódico “Les Temps Moderns” (1947). O nome proveio do filme de Charlie Chaplin “Modern Times” (1941) e acabou por ser um congregador de crónicas opinativas sobre as temáticas que dominavam a realidade então. Simone editou nesse jornal até ao fim da sua vida e usou-o substancialmente para promover o seu trabalho e as suas ideias. Foi também neste espaço que a escritora promoveu a obra “Le Deuxième Sexe” (1949). Nesta produção, a autora abordou o tratamento da mulher durante as várias gerações compreendidas pela História e, de forma implícita, desencadeou a segunda fase do feminismo, assente na revolução moral visada no livro.
Como existencialista, a filósofa acreditava que a existência antecedia a essência e que, por isso, um sujeito tornar-se-ia uma mulher, não nascendo uma. Pegando no conceito hegeliano do “Outro”, concluiu que foi a construção social da figura feminina e a conceção de que esta se tratava da antítese do Eu também moldado socialmente que se revelou crucial para a opressão da mesma, declarando que as mulheres são tão capazes de escolher como o homem e que, por isso, se podiam transcender de igual forma. Esta posição exige que a mulher assuma responsabilidade por si e pelo mundo onde age, onde escolhe a sua liberdade e os contornos desta. Numa parte subsequente, de Beauvoir culpa os homens por mistificarem o papel da mulher, fazendo-o graças à incompreensão que dominava a sua análise da personalidade e dos problemas femininos.
Este fator fez com que o homem a estereotipasse e que a colocasse num lugar abaixo na hierarquia social, acabando esta tendência por se estender às diversas culturas. Por esse motivo é que, nas mesmas, a ascensão de uma mulher nos escalões da sociedade gerava alguma relutância no indivíduo masculino. Em suma, a francesa defendeu que a mulher se antecipasse a partir do valor intrínseco feminino, valorizando as suas particularidades e desprezando o retrato abjeto perpetuado por aqueles que descreviam os casos de mulheres bem-sucedidas. A autonomia da mulher foi, a partir deste marcante momento, sendo alimentada e as manifestações não tardaram, vindo a predominar nas décadas sucessivas. O seu papel de feminista, apesar de ainda não totalmente cumprido, para lá caminha.
“What is a woman?’ […] The fact that I ask it is in itself significant. A man would never get the notion of writing a book on the peculiar situation of the human male. But if I wish to define myself, I must first of all say: ‘I am a woman’; on this truth must be based all further discussion. A man never begins by presenting himself as an individual of a certain sex; it goes without saying that he is a man. […] It would be out of the question to reply: ‘And you think the contrary because you are a man,’ for it is understood that the fact of being a man is no peculiarity.”
Por fim, dentro do lote das suas obras mais mediáticas, Simone de Beauvoir escreveu, em 1954, “Les Mandarins”. Enquadrando-se no estilo roman à clef (pormenores fictícios mesclam-se com uma linha condutora primordialmente realista), é um conto que retrata o núcleo de intelectuais que se formou no pós-Segunda Guerra Mundial. O título transporta consigo uma carga simbólica interessante, referindo-se aos mandarins que orientavam a governança diária na era imperialista chinesa e que pontificavam pelo valor moral que lhes era inerente. É precisamente essa moralidade individual, para além dos habituais temas existencialistas e feministas, que é retratada nesta história. O poder literário da autora repercute-se no momento em que decide conjugar a dimensão sociopolítica e a intelectual, desenhando ligações pormenorizadas e profundas entre as personagens envolvidas. Os protagonistas (Henri, Robert e Anne) presumivelmente correspondem a, respetivamente, Camus, Sartre e De Beauvoir.
Simone De Beauvoir, até 1986, ano da sua morte, nunca prescindiu de registar o que pensava e o que lhe apoquentava. Viu partir os seus companheiros de serão e de vida mas não foram essas rudes perdas que lhe retiraram a motivação pela intervenção. Por imutáveis crenças e por palavras imensas foi constituída a francesa. Partilhou filosofias de vida e de pensamento com Sartre, contactou com as vicissitudes sociais do seu país e foi até galardoada pelas suas peças literárias. No entanto, o que essencialmente importa não são os prémios mas sim a grandeza das teorias, das ideias, das perspetivas e das ações. A vida de Simone não foi vivida desprovida destas. Mentes acordaram, olhos despertaram e corações abriram. Simone de Beauvoir, uma daquelas que acreditava na existência antes da essência, foi mais além. Fez da existência e da essência eternas e isso reflete-se nas voltas e mais voltas que a sociedade lá dá. Voltas essas que visam os três valores tão apregoados pelos gauleses: igualdade, fraternidade e liberdade. Simone de Beauvoir foi tudo isso e continua a ser. Na verdade, Simone é existência, essência e transcendência.