Os Cegos (e Surdos)
25-07-2025 - Rui Verde
Sucedem-se as manifestações por todo o país, umas maiores, outras menores, umas com mais sucesso, outras com menos. Não se podem tirar demasiadas conclusões, nem, sobretudo, ter certezas.
Mas alguns pontos comuns são óbvios: estas manifestações versam essencialmente sobre aspectos socioeconómicos: vida cara, pobreza, condições de sobrevivência. São manifestações do concreto, e não de ideias abstractas, como algumas anteriores que contestavam resultados eleitorais.
Além disso, há uma imensidão de juventude, juventude que não conheceu a guerra, mas convive com a frustração do desemprego, do estudo para nada, de ver as elites a voarem para Portugal e investirem no luxo estrangeiro, enquanto eles comem areia em Luanda.
Se uma parte das manifestações terá organizações e promotores visíveis e conhecidos, outra parte é um movimento orgânico de puro descontentamento.
Ainda há que mencionar, além da parte física e visível, o forte apoio nas redes sociais. Também aqui, este apoio não quer dizer tudo; até pode não ser transformado em realidade, mas é um sintoma igual de repulsa pelo estado de coisas.
O ponto essencial é que há uma realidade efectiva de descontentamento com a situação económica e social que, obviamente, tem fortes repercussões políticas.
José Eduardo dos Santos e o MPLA, após a vitória na guerra em 2002, tentaram fazer um pacto “à chinesa” com o povo, através do qual o MPLA governaria sem contestação, assegurando o desenvolvimento do país. Tratava-se de uma legitimação do poder pelo exercício. É sabido que esse pacto falhou definitivamente em 2015/2016.
João Lourenço retomou-o ao anunciar que queria ser o Deng Xiao Ping de Angola, isto é, mantendo o MPLA no poder, mas reformando a economia do país rumo à prosperidade.
O que estas manifestações representam é a resposta do povo, segundo a qual, mais uma vez, esse pacto não foi cumprido. Não foi assegurado o desenvolvimento para o povo em troca do governo do MPLA.
É evidente que se poderão apresentar estatísticas recentes com o desempenho positivo da economia e de intensa construção de infra-estruturas, que são reais, mas a verdade é que não é esse o sentimento prevalecente.
Sabemos que, na China, houve uma altura em que o povo sentiu que as promessas não estavam a ser cumpridas e se revoltou, dando origem aos famosos acontecimentos de Tiananmen em 1989, que resultaram num massacre dos estudantes às mãos do exército chinês. Depois da violenta repressão, Deng Xiao Ping não recuou nas reformas, pelo contrário, acelerou-as com a sua famosa viagem ao Sul.
A “Viagem ao Sul” de Deng Xiao Ping, realizada em Janeiro de 1992, marcou um ponto decisivo na trajectória da China rumo à modernização económica. Após o retrocesso nas reformas em 1989 e o ressurgimento de ideologias conservadoras, Deng, preocupado com a estagnação do país, decidiu intervir directamente. Visitando cidades como Wuchang, Changsha, Shenzhen, Zhuhai e Guangzhou, defendeu com firmeza a aceleração do desenvolvimento e a abertura ao exterior, reforçando a importância de experimentar, aprender com os erros e adoptar novas ideias e tecnologias. Embora inicialmente ignorada pelos media estatais chinesa, a viagem ganhou destaque internacional e, posteriormente, dentro do próprio país. Os discursos de Deng consolidaram a direcção das reformas, revitalizaram a economia e pavimentaram o caminho para o crescimento acelerado e a ascensão da China como potência global.
Em Angola, a fase actual é pré-Tiananmen. É evidente que são necessárias reformas efectivas na economia e que é preciso desfazer o estrangulamento social. O povo está a fazer ouvir a sua voz.
Qual a resposta do governo e do partido que o apoia? Aparentemente, não vêem. Estarão cegos? E, além de cegos, estarão surdos? O cego pode ser conduzido por quem ouve, mas se ninguém vê nem ouve… não há caminho.
Aquilo a que assistimos no MPLA é a uma forte disputa interna sobre pré-candidaturas à presidência do partido, reciclando velhas figuras, surgindo novas personalidades, mas não se percebendo como tomarão o rumo do desenvolvimento do país.
As lideranças mobilizam as bases, mas seguem os antigos cânones, pouco inspirados e virados para uma população pouco esclarecida. Não falta dinamismo à nova vice-presidente, mas, no final do dia, as palavras soam a repetições do passado que já não mobilizam ninguém. Neste momento, o MPLA é um partido dividido, a que faltam ideias para o país, limitando-se a adoptar as linhas do Fundo Monetário Internacional (FMI), que apenas servem como medidas de estabilização conjuntural e não de desenvolvimento. Basta ver a ausência de efeitos estruturantes das anteriores intervenções do FMI em Angola.
Pior ainda, a imagem que os dirigentes transmitem é de desinteresse pelo povo: não explicam as medidas, aplicam-nas de cima para baixo, sem muita conversa, continuam a exibir sinais exteriores de riqueza totalmente desajustados da realidade nacional, criando um fosso psicológico com o resto da população. Vão e vêm de avião, mostram os seus relógios dourados, a sua roupa de marca, as suas gravatas de seda. A questão não é o facto de terem dinheiro para comprar esses objectos. A questão é que, por actos e omissões, criam um abismo com o povo — o povo que vota e que os elege.
Isto não significa que não haja dirigentes que de facto trabalham e se preocupam com o povo, bem como grupos económicos que criam riqueza no país.
O problema é que tudo isto é suplantado pelas promessas não cumpridas, pelas ilusões de grandeza que soam a falso. Os exemplos poderiam ser dados em cascata.
A promessa, feita em 2017 pelo presidente João Lourenço, de criar 500 mil empregos até ao fim da legislatura não foi cumprida. O plano PAPE, lançado em 2019 com 58 milhões de euros, enfrentou entraves como corrupção, má gestão e falta de capacidade do sector produtivo para absorver trabalhadores. Em 2025, o governo apresentou um novo projecto, agora com apoio do Banco Mundial, para tentar alcançar a mesma meta até 2029, evidenciando que o objectivo inicial fora adiado e reformulado. A taxa de desemprego não descola de uns assombrosos 30% (com ligeiras oscilações) e o desemprego jovem é sempre superior a 55%.
O metro de superfície de Luanda, avaliado em 3 mil milhões de dólares, prometia revolucionar a mobilidade urbana, mas até 2025 ainda não avançou para a fase de construção, envolto em dúvidas sobre financiamento e transparência.
Até Julho de 2025, nenhuma das três principais refinarias previstas em Angola — Cabinda, Soyo e Lobito — está em funcionamento, apesar de promessas recorrentes do governo para reduzir a dependência de combustíveis importados. A refinaria de Cabinda, cujo início de operações estava prometido para Janeiro de 2025 com capacidade para 30 mil barris por dia, continua incompleta, tendo apenas activado sistemas auxiliares. A refinaria do Soyo, com operação prevista em 2026 e capacidade para 100 mil barris diários, mostra um progresso físico de apenas 2%, ainda sem garantias de financiamento sólido. Já a refinaria do Lobito, planeada para entrar em funcionamento em 2027, com capacidade para 200 mil barris por dia, regista um avanço físico de 10,29%, mas continua envolta em indefinição quanto à sua estrutura accionista.
Progresso das refinarias em Angola (Julho de 2025)
Cabinda ███████████░░░░░░░░░░░░░ ~35%
Soyo █░░░░░░░░░░░░░░░░░░░░░░░ ~2%
Lobito ██████░░░░░░░░░░░░░░░░░░ ~10.29%
Estes números revelam uma gestão inconsistente dos projectos estratégicos e alimentam o cepticismo em relação às promessas de transformação económica feitas pelo executivo. Demonstram um desfasamento preocupante entre o discurso político e a sua concretização, minando a confiança da população nas instituições.
E este é o problema essencial: a população (ou uma parte muito significativa da população) perdeu a confiança no executivo e no partido que o apoia.
A desconfiança não nasce apenas dos fracassos de gestão, mas também da ausência de escuta activa, de reformas estruturais reais e da renovação de práticas políticas que aproximem os decisores da vida concreta dos cidadãos.
É como se o partido estivesse a gerir o presente com receitas do passado, ignorando que o contexto mudou, que as exigências sociais são maiores e que a tolerância ao discurso vazio é cada vez menor.
Fonte: Maka Angola
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